segunda-feira, 1 de junho de 2009

ATRÁS DA ESTANTE

Leitor hipócrita! Sente prazer em tirar entretenimento do sofrimento de seus semelhantes! Dedica-se à leitura de contos de terror apenas para encontrar a ruína de pobres almas atormentadas por horrores terríveis.
Não venha negar esta verdade! Você não se importa com a vida dos personagens. Sente-se satisfeito apenas com a danação deles.
Olhe para seu íntimo e se pergunte se não é verdade. Se não o fosse, o leitor daria alguma importância à breve existência de Roger Ramos? Não, nunca. Mesmo agora, sabendo de sua existência, pouco lhe importa quem ou o que ele foi.
Pobre publicitário curioso; Dedicado à sua profissão, passava horas noite afora, trabalhando em sua casa, desenhando storyboards pra comerciais de tv. Horas essas cuja solidão de solteiro só era aplacada pela presença de Elvis, seu gato de estimação.
Elvis era um gato alegre, brincalhão, e curioso. Qualidade esta que chega a ser irônica, revendo o que aconteceu posteriormente. Roger possuía o gato há pouco mais de um ano, metade do tempo em que morava em sua casa própria, depois de alguns anos dividindo um apartamento alugado com um colega de faculdade. Ele se considerava um homem abençoado por ter conseguido um emprego numa agência publicitária tão logo terminou a faculdade.
Roger não imaginava o que o futuro lhe reservava.
Apesar de ainda não ter encontrado o amor de sua vida, Roger sempre dedicava alguns minutos de seu tempo na agência para conversar com uma secretária que lá trabalhava. Loira, cabelos curtos, seios que saltavam aos olhos quando ela ia ao trabalho com blusas decotadas. Roger pensava em convidá-la pra sair, "tomar alguns drinques, dançar, ir ao cinema, essas coisas", enquanto desenhava. Ele estava fazendo o storyboard de uma propaganda de cerveja. Pessoas bebiam numa praia. Ele pensou em desenhar a bela secretária. Colocar o rosto dela em uma das mulheres que bebiam cerveja. Depois, mostraria pra ela, que se sentiria lisonjeada, o que facilitaria pra ele conquistá-la. Ele até imaginava a cena:
-Veja só o que fiz ontem.
-O que é? Outro storyboard? - Diria ela.
-Sim, dê uma olhada!
-Bonito! - Diria ela, enquanto admirava os desenhos. Você é um excelente desenhista!
-Veja o rosto desta moça!
Ele apontaria para a loira de cabelos curtos usando biquíni, e com uma lata de cerveja na mão. Ela ficaria espantada por um segundo, depois sorriria admirada.
-Sou eu?
-Sim, é você. Gostou?
-Claro.
Então, ele diria o quanto a acha atraente, e o porquê de tê-la desenhado. Ela se encantaria, e ele a convidaria pra sair.
Mas, e se ela se sentisse constrangida por ter sido retratada de biquíni? E se seus seios estiverem desenhados maiores do que são realmente? Como reagiria?
Ao pensar nisso, decidiu desenhar todas as mulheres do storyboard com cabelos compridos, a maioria com cabelos pretos.
Terminados os desenhos, Roger pousa o lápis na prancheta e olha as horas. 1 hora da manhã. "Até que acabei cedo, hoje". Ele baixa o olhar para Elvis, que estava ao lado da estante da sala, olhando pela fresta entre a estante e a parede. Roger chamou o gato pelo nome, que, ao ouvir, desviou-se do que fitava e foi até seu dono, esfregou-se em suas pernas, e começou a ronronar.
-Um lanchinho antes de dormir? Que tal?
O gato então miou, como se houvesse compreendido o que o dono sugeria e lhe estivesse respondendo afirmativamente. Então, os dois se dirigem até a cozinha, o gato mais apressadamente, quase derrubando o dono, fazendo-o tropeçar em seu corpo. Roger então coloca um pouco de ração no prato de Elvis, e em seguida serve-se de um copo de leite e duas fatias de um bolo que sua mãe lhe trouxera no último domingo. E foi dormir.
***
Na noite seguinte, Roger trouxe mais trabalho pra casa. Ao abrir a porta e entrar na sala, seu olhar caiu diretamente em Elvis, que novamente estava ao lado da estante, olhando pela fresta entre ela e a parede. Ao ver o dono, Elvis abandonou o que fazia e correu para suas pernas, esfregando-se.
Roger deixou suas coisas numa escrivaninha, e foi até a cozinha dar comida para o gato. Em seguida, foi tomar banho. Isso era apenas uma parte do seu ritual quando chega em casa. Depois do banho, um lanche. Um pouco de tevê ("não perco Jornada nas Estrelas por nada", ele diria), o jantar, e só então, ao trabalho. Mais um storyboard, mas pra outro comercial.
Enquanto desenhava, Roger pensava na secretária; cada dia ela parecia mais encantada ao conversar com ele. Por isso, ele não dava atenção ao gato, cuja cauda balançava de um lado para o outro, demonstrando uma certa impaciência com o que observava atrás da estante.
A certa altura, Roger se levantou para ir ao banheiro. Quando faz isso, Elvis costuma se levantar e correr na mesma direção, se precipitando na frente do dono, e indo até a cozinha, imaginando talvez que receberia mais um pouco de comida. Desta vez, ele não fez isso, tão entretido que estava com o que quer que houvesse atrás da estante.
Roger sequer percebeu desta vez; Apenas quando saiu do banheiro, e não viu o gato no corredor, voltou para a sala e viu o gato, concentrado no que fazia.
-Elvis...
Mas o gato não desviou seu olhar, apenas mexeu as orelhas na direção do dono, que sem dar maior atenção ao gato, voltou para sua prancheta, para terminar seus desenhos. "Provavelmente, deve ter uma lagartixa, ou barata, encurralada lá atrás", pensou, "Os gatos às vezes parecem ter um poder de hipnose em suas presas. "Quando morava com seus pais, Roger teve um gato que hipnotizava baratas, deixando-as por horas imóveis num canto da casa, como se estivessem mortas. Elas só voltavam a se mover quando alguém mexia nelas.
Naquela noite, Roger terminou seu trabalho à 1:27 da madrugada, se levantou e foi pra cozinha tomar um copo d'água antes de ir dormir. Elvis não o seguiu. Ficou a fitar o vão entre a estante e a parede.
***
Sexta-feira, último dia útil da semana. O dia favorito de todo trabalhador. E, naquela sexta-feira, as coisas foram ainda melhores para Roger. Ele ouviu a linda-loira-gostosa secretária dizer "claro, eu adoraria!" para ele.
-Ótimo. Então, nos encontramos às 7 hs da noite lá.
-Vou adorar!
Depois disso, Roger voltou pra casa, contente, pois ele tinha um encontro com uma garota linda, e sentia que agora iria ter um compromisso sério. Chega de só "ficar". Isso é coisa pra adolescentes.
Para ter o fim de semana todo dedicado à garota, Roger decidiu terminar seu trabalho naquela mesma noite. Desenhou até pouco mais de 2:00 da madrugada. Havia pouco trabalho naquela noite, mas durante todo o tempo, Elvis o incomodava.
A princípio, o gato apenas olhava para o espaço atrás da estante. Mas depois começou a mexer a cauda impacientemente. Mas a atenção de Roger só foi despertada quando o gato começou a colocar sua pata no vão, como se tentasse pegar algo.
Roger começou a desviar sua atenção dos storyboards para o gato. Se não fosse por isso, teria terminado mais cedo. Quando então o gato começou a miar, Roger não conseguiu mais se concentrar nos desenhos.
Felizmente, um storyboard não precisa ser uma obra de arte. Mas mesmo assim, ao terminar de fazê-lo, deu uma olhada, e concluiu que, no dia seguinte, precisaria fazer uns retoques em várias pranchas. E o gato ainda miava.
***
Ao se levantar no dia seguinte, Roger planejava começar o ritual do fim de semana, que consistia em arrumar a casa e lavar roupa, a começar logo após o café da manhã.
Elvis estava na sala, ainda a fitar atrás da estante. Da cozinha, Roger podia vê-lo, enquanto passava margarina na torrada. A cauda se mexendo convulsivamente. Roger mordia a torrada. O gato olhava fixamente para o vão. Roger o observava. O gato começou a miar. Roger ficou curioso. O gato miava.
Ao terminar de tomar café, Roger decidiu ver o que havia atrás da estante que deixava Elvis perturbado. Ele iria arrastar o maldito móvel, e ver o que tinha atrás. Só esperava que não fosse uma barata. Seria uma merda perder tempo por causa de uma barata.
Primeiro, Roger desplugou da tomada a tevê e o dvd. Tirou os aparelhos e os colocou no sofá. Em seguida, os livros, depois os poucos enfeites e retratos. Retirou tudo o que havia na estante, com Elvis a miar no seu ouvido. Depois, arrastou a estante, afastando um dos lados da parede o máximo que pôde. Havia um buraco na parede, próximo ao chão. Um enorme buraco.
Elvis, num impulso, pulou para atrás da estante, entrando pelo buraco. Devia ser um buraco fundo, pois o gato sumiu por ele. Roger tentou impedi-lo, chamando seu nome, mas não conseguiu.
Roger pegou uma lanterna, se colocou de quatro atrás da estante, engatinhando até o buraco. Ele olhava pra dentro do buraco, grande o suficiente pra caber uma pessoa, chamando por Elvis. Como o gato não respondia a seu chamado, Roger entrou pelo buraco, atrás dele.
Naquela noite, às 19:50, uma linda secretária, loira e furiosa, deixou o restaurante onde estava, decidida a dar uma bronca no homem que a deixou esperar quase uma hora em um encontro, que seria o primeiro entre eles. Mas ela não teve oportunidade, pois nunca mais o viu. Na verdade, ninguém nunca mais viu ou soube que fim levou Roger Ramos, ou Elvis.
A polícia, chamada semanas depois pela mãe de Roger, encontrou o buraco na parede, escavou o chão da casa, o quintal próximo à parede, e não encontrou nenhum vestígio deles.
Pra onde eles foram? Algum dia voltaremos a ter notícias deles? Quem se importa? Você, com certeza não. Você, como leitor, está apenas satisfeito por ter acompanhado mais uma tragédia. Imaginando qual será a próxima história de terror que vai ler. Provavelmente esperando que haja muito mais horror, violência e danação do que nesta.
Já foi dito que lê-se histórias de terror fictício pra fugir do terror real.
Mas acho que alguns leitores são apenas sádicos.

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